terça-feira, 27 de agosto de 2019

Conto: Os não sentimentos de Andréia - Drama sobre a Depressão



Conto: Os não sentimentos de Andréia.

Um dia cinzento, cheio de nuvens, frio... Um dia ensolarado de céu limpo e caloroso... Não importa a estação, não importa o que o sol diga, a primeira opção sempre será o coração de Andréia. Iguais são todos os dias de sua vida, apenas e somente quando não piores do que o normal. Cansaço, esgotamento, “Não quero viver” - os pensamentos.
Será que houve tempo em que Andréia era outra diferente da de agora? Sim, houve, mas já foi. Passou na mesma velocidade de um piscar de olhos. Aqueles dias quentes capazes de aquecer qualquer inverno, dias de mãe ao seu lado, dias de família que a acolhia, dias passados.
“Se eu pudesse voltar lá, quiçá um dia que seja... Eu voltaria para ficar. Mas que tolice a minha, voltar não dá mais, nunca foi possível, agora tão pouco o é. Findo a pensar em tal possibilidade, findo”.

“Houve época em que as lagrimas derramavam meu coração, mas estes tempos também se foram, as lagrimas secaram, sobrou apenas um nó no peito, um nó na garganta, um nó na mente. Virei um nó completo, da cabeça aos pés. Um emaranhado de não sentimentos, um emaranhado de possibilidades não alcançadas, um emaranhado de terrores e sombras paralisantes. Pena? Do que isso me serve? Quando sentimento nenhum me atinge. Seja bom ou ruim, nada. Respiro, sei que estou viva. O coração bate, sei que estou viva. Estou mesmo viva? O que é estar viva? Novamente me sobrevém aqueles dias, aqueles dias eu estava viva”.

Vinte e três anos, uma jovem com tanto pela frente. Tanto o que? Tanto a viver. Mas aquele dia, aqueles dias, os quais seguiram à frente dos anteriores, transformaram tudo. A palavra transformar costuma ser positiva, costuma, neste caso ela é lamentável. Se Andréia chegou até agora foi por muita força, uma força desconhecida, um instinto de sobrevivência, uma insistência sobre o que poderia ser dito falido. Aqueles dias em que mamãe já não existia, aqueles dias em que mamãe não amava mais seu fruto querido. Aquele homem que entrou sem ser chamado e arrasou o dia ensolarado de céu limpo e caloroso, matou o sol, emudeceu os sorrisos.

“Por que eu? Por que a mim? Eu nem sabia do que se tratava, criança, doze anos. Por que eu?”.

“Sentimentos de desprezo, sim, aquele olhar me tomava com desprezo, um desprezo com desejo, odioso eram aqueles olhos. Não tinha parede, nem muro, nem portão. Não tinha sono, delírio, nem imaginação. Não tinha onde me esconder. Me esconder daqueles olhos, daquelas mãos, daquele tudo. Queria eu voltar no tempo e proteger aquela pequena criança indefesa. Mas olha eu de novo, voltar no tempo, que bobagem. Não se volta no tempo, não de verdade. Agora me resta continuar, não por vontade, mas por irracionalidade, por instinto, viver. Mas o que é viver?”.
Andréia passa seus dias em sombras, vivendo como pode. Andréia trabalha, pois é necessário, conversa, pois é necessário, as vezes sorri, pois é necessário. Ninguém imagina que Andréia é um dia nublado, Andréia é a competente, a responsável, ela é Andréia a bem sucedida. Se as pessoas pudessem ver o interior umas das outras, se as pessoas pudessem sentir o não sentir uma das outras, esse vazio existencial. Mas não podem, é besteira pensar que poderiam. Como poderiam se não lhes dói na carne? De fato, não poderiam.

Algumas pessoas tem sorte, outras nem tanto. Algumas pessoas perdem a sorte enquanto outras a encontram mais tarde. Andréia faz parte das que encontram mais tarde. A sorte muitas vezes está em uma chance de transformar a sua vida, transformar agora sim em sentido agradável. Alguns anjos vivem entre nós, são anjos de carne e pura energia, anjos que inspiram compaixão e expiram amor. Graças a estes anjos! 

Uma promoção? Sim, uma promoção recebeu Andréia por seu trabalho árduo. Agora seu novo setor exige um novo treinamento, algo diferente do que já havia feito no passado. Lidar com pessoas, elas são complicadas, Andréia é complicada. Micaela, doutora Micaela, este é o nome de um dos anjos acolhedores de não sentimentos.

“Antes de lidar com os outros você precisa tratar a si mesma” — disse Micaela. Andréia achou estranho tal frase “Como assim tratar de mim mesma?”. Os dias foram passando e Andréia entendeu o significado daquelas palavras, o tratar de si mesma era cuidar, amar, trazer de volta o sol de um auto abraço. Micaela ouvia, era difícil para Andréia falar, aliás, ela nunca gostou de falar, menos ainda de seus não sentimentos. Teve que voltar naquela época após a época de dias quentes, aquela época dos olhos de desprezo. Um toque, dois toques, algo fervia dentro de Andréia, uma combustão de sentimentos, sim Andréia tinha sentimentos em seus não sentimentos. “O que se passa? Que calor é esse? Escorre em meu rosto um líquido quente que entra em minha boca, é salgado. Seriam lágrimas? Onde elas estavam todo esse tempo que não as vi? Eu ainda tenho lágrimas!” — impressionada está Andréia que ainda tinha sentimento em seus não sentimentos.

Agora as lagrimas escorriam livremente como um rio, parecia não ter fim. Aos poucos aqueles nós iam afrouxando, desatando, libertando... O verão estava voltando e Micaela estava ali, observando, quieta, com um sorriso de quem diz “Isso, muito bem, deixe-me te ajudar. Eu te entendo, você é uma boa pessoa”.

Micaela explica a Andréia que tudo ao qual ela passou a deixou como ela estava, que nunca é tarde para desfazer dores internas, que nunca iriam se apagar as lembranças, mas que era possível ter o que e o por que viver.

Fim.

Literatura Literata.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe o seu comentário abaixo: